Literatura de Cordel
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Bandeira da Paraíba
Monografia
Autor: Valentim Martins Quaresma Neto

Capa
    Dedicatória
    Sumário
    Apresentação
Capítulo I   Capítulo II   Capítulo III   Capítulo IV   Capítulo V   Anexos

CAPÍTULO II

2. A LITERATURA POPULAR E SUA HISTÓRIA

                As manifestações culturais de cada povo, de cada nação, de cada tribo, ocorrem e sempre ocorreram seguindo o curso da evolução do pensamento, da criatividade e da possibilidade de adequar-se aos novos desafios, por parte dos habitantes, nas mais diversas situações de vida, de ambiente e de circunstâncias que cada comunidade apresenta.

                Existem várias versões sobre o surgimento da literatura de cordel, mas a maioria apresenta afirmações comuns em dois pontos básicos:

a) Que essa modalidade cultural surgiu na Europa feudal por volta do século XII;

b) Que os menestréis, trovadores e jograis (três tipos de poetas andarilhos), registravam, mesmo que de forma sutil, a luta entre opressores e oprimidos, ou seja, animavam as festividades nos palácios, cantando as peripécias e os fatos inusitados acontecidos com o povo que vivia em regime de servidão total; e uma vez ao lado desse, registravam em suas trovas o esbanjamento e a luxúria que existia por parte da nobreza, do clero que eram, em grande parte, os mesmos senhores feudais.

Segundo Luyten (1983:16),

"...havia na Europa medieval, e ainda há três grandes centros de peregrinação famosos: Roma - A Santa Sé; Jerusalém - a terra santa e Santiago de Compostela - lugar onde se dizia ter sido enterrado o apóstolo Santiago".

                Como o povo durante toda a Idade Média agrária e feudal, não tinha direito ao estudo, não possuía a liberdade de ir e vir, ou seja, não saíam dos seus feudos, exceto em duas ocasiões: para guerrear ou para fazer peregrinações aos centros supracitados, torna-se fácil compreendê-lo nas suas manifestações orais e artísticas.

                "Nas viagens de peregrinações existiam três focos de concentração de pessoas:

a) Provença - Sul da França, onde os peregrinos reuniam-se antes de atravessarem o Mar Mediterrâneo para chegar à Palestina;

b) Lombardia - Norte da Itália, por onde se tinha de passar para chegar a Roma;

c) Galícia - Onde ficava o santuário de Santiago." Id. ibid. p: 16.

                A Literatura de Cordel surge nesses três lugares, cujo trabalho dos poetas nômades era semelhante ao jornal de hoje, noticiando os últimos acontecimentos e cantando poemas de aventuras e bravezas. Esse caráter informativo e jornalístico do cordel, ainda continua a existir, mesmo em tempos modernos.

                Com a invenção da imprensa e as grandes descobertas marítimas, posteriormente, com as Revoluções Francesa e Industrial, burgueses e mercadores introduziram novas formas de sobrevivência e o cordel tomou novo rumo, inclusive, espalhando-se pela América, trazido pelo branco colonizador.

2.1. O Cordel no Brasil

                A modalidade escrita da literatura popular é registrada através do famoso folheto de cordel que ganhou esse nome por ser pendurado nas feiras livres em cordas ou barbantes. O cordel apresenta uma estrutura formal muito simples. Geralmente impresso em papel jornal e apenas a capa em pergaminho, impressa pelo método de xilogravura, os folhetos são escritos em sua maioria em versos de 07 sílabas poéticas com estrofes de 06 ou 07 versos. Apresentam uma estrutura formal bem característica, compêndios de 08(oito), 16(dezesseis) e 32(trinta e duas) páginas, onde os dois primeiros tipos são considerados folhetos e o último é também chamado de romance.

                Dada a simplicidade do material utilizado na confecção dos folhetos, esse tipo de literatura é o de menor custo que se tem conhecimento, portanto uma excelente alternativa para propiciar o acesso à leitura, sem maiores ônus para o público leitor. A vantagem da aquisição deve ser considerada, principalmente quando sabemos que aproximadamente 50% (cinqüenta) da população do Nordeste e 30% (trinta) dos brasileiros têm renda 'per capita' abaixo da linha de pobreza e o acesso à literatura de uma forma geral, principalmente referente à compra de livros, é exclusividade dos mais abastados economicamente.

                Mesmo com as dificuldades e os percalços de ordem econômica, encontramos no Brasil uma diversidade infinita de poetas populares, gente de todas as idades, que produz textos poéticos sobre os mais variados assuntos, empregando uma criatividade nunca vista e uma forma de compor e de se expressar muito particular.

                Em nosso país, como modalidade escrita e impressa, o surgimento da literatura de cordel data da última metade do século XIX e estende-se até os dias atuais, cujos tempos áureos aconteceram nos anos 40 e 50 do século XX, onde essa modalidade cultural atingiu seu ápice maior. Assim como o cordel teve sua fase de ouro, entrou posteriormente em uma profunda crise.

                Entre os fatores considerados como possíveis causadores dessa crise estão:

- o aparecimento do rádio de pilha, instrumento de fácil acesso às populações rurais;

- a penetração da televisão no interior e a atração que exerceu sobre sua população;

- a elevação dos preços do material empregado pelas tipografias, especialmente o do papel;

- a queda da participação popular na vida do país;

- a introdução, no campo, de valores de uma cultura urbana, não popular, atingindo principalmente as novas gerações;

- a introdução de modas, heróis, costumes, muitos dos quais importados do estrangeiro.           Antologia de Literatura de Cordel, 1978, p. 20

                Os mais de 100 anos de cordel impresso no Brasil constituem-se no que há de mais concreto e verdadeiro sobre a História do país, especialmente a historiografia nordestina, onde essa modalidade cultural forma um capítulo à parte.

                Acontecimentos históricos como o fenômeno do Cangaço, a atuação de Padre Cícero como líder religioso, a Sedição de Juazeiro, a Coluna Prestes, a história de Canudos e o suicídio de Getúlio Vargas, entre outros, são alguns dos tantos assuntos tratados que foram registrados na memória do povo através da oralidade e da literatura de cordel, às vezes com espírito humorístico e/ou fanático, mas sem fugir da verdade dos fatos. Conhecer as páginas dos folhetos impressos em material simples é também desvendar e entender o curso da História do Brasil, principalmente, da região Nordeste.

                Não faz muito tempo que as feiras livres nas cidades nordestinas eram repletas de bancas que vendiam folhetos. O público leitor, em sua grande maioria, camponês, tinha o privilégio e o prazer de conhecer um pouco da história, de participar e vivenciar, através da leitura dos mais simples aos mais complexos episódios registrados na literatura popular.

                Não temos dúvida em afirmar que a literatura popular, através do cordel, ajudou a formar o pensamento político, participativo e organizacional da juventude dos anos 60, tão firme em seus propósitos e tão clara em seus ideais! Pois, em sua grande maioria, os folhetos de cordel estão carregados de uma forte ideologia engajada e transformadora que os poetas populares, verdadeiros porta-vozes do povo, acumulam, vivenciando e ouvindo o clamor dos menos favorecidos nas mais variadas situações de exploração por parte dos patrões, dos descalabros administrativos proporcionados pelos governantes e toda essa saga de luta e trabalho forçado que é a vida do trabalhador.

2.2. Oralidade e Memória

                Já discernimos sobre a parte escrita da literatura popular, ou seja, o cordel, mostrando sua origem e suas características básicas. Não poderíamos deixar de mencionar o aspecto oral e a memória, pois os mesmos constituem a parte mais dinâmica e folclórica desse universo conhecido como cultura popular. A oralidade é a expressão da visão que o povo tem das suas vidas e do mundo que o cerca. É uma espécie de célula mãe que vitaliza e impulsiona a propagação dos fatos que marcaram ou marcam a história de um povo. A memória é a base que mantém a história atual e dinâmica. São tantos os ataques às formas populares de expressões que se não fosse a oralidade e a memória do povo, muito outros elementos culturais como costumes, lendas, rituais, etc., já teriam desaparecido do convívio de vários grupos sociais.

                Sociedade como a nordestina ainda conserva, mesmo que com algumas modificações, muitos dos rituais, crenças e valores medievais. Esses valores foram transmitidos através da oralidade e da memória para as novas gerações, marcadas pela simplicidade, pelas condições climáticas, ambientais e econômicas, pelo estilo de vida, pela religiosidade, que fazem do Nordeste um ambiente favorável para que essas tradições folclóricas e culturais tornem-se sempre cada vez mais vivas e propaguem-se através dos tempos, observando as alterações necessárias.

Segundo Luyten (1983:21), "...na literatura popular como na erudita temos dois aspectos fundamentais, a prosa e a poesia":

a) Prosa - constituída pelos contos populares, provérbios e teatro popular, a prosa oral é muito necessária para a formação das crianças. Esses elementos devem ser mais utilizados em sala de aula no cotidiano escolar para que suas múltiplas utilidades possam ser aproveitadas na transmissão do conhecimento informal e formal. A comunidade escolar já é familiarizada com esses tipos de manifestações culturais, pois geralmente já entra na escola, sabendo de muitos contos, cantigas, quadras que aprendeu com a família ou com os vizinhos na sociedade.

b) Poesia - mesmo sendo registrada ou não a poesia oral tende a perdurar e ser repassada de geração em geração.

                Para Luyten (1983:24), existem dois tipos de poesia oral: a fixa e a móvel. A parte fixa da oralidade na poesia seria aquela que é decorada pelo público e é retransmitida ao longo do tempo. Exemplo: as cantigas infantis de ninar e algumas quadras que caem na memória do povo. Ao passo que a poesia oral móvel é sempre criada ao prazer do momento, fenômeno que o povo chama de repente. Geralmente ritmada, e feita de improviso pelos violeiros, cantadores de coco e emboladores, a poesia oral móvel flui como bolhas de sabão, por isso não há uma preocupação em registrá-la, pois os poetas sabem que sempre aparecerão muito mais.

"Os fatos podem ser apresentados de várias maneiras e através de poesias que se classificam nos conteúdos temáticos abaixo":

"Líricas, filosóficas, humanísticas, contemplativas, descritivas, narrativas, apologéticas, de agradecimentos, picantes, epigramáticas, humorísticas, mistas, condoreiras, de bravuras ou vantagens, disparates, satíricas, de raciocínio matemático, de trocadilhos, de trava-línguas, de súplicas, de lamúrias, de mensagens ou recados, etc.".
(Dantas, 1998: 249).

                Com essa riqueza e diversidade temática a poesia oral móvel é solta e descomprometida. Alguns cantadores são verdadeiras enciclopédias ambulantes que versejam sobre os mais variados acontecimentos ocorridos na História da humanidade, cantam a Literatura, a música e as artes, conhecem livros importantes como a Bíblia, Os Lusíadas e muitos outros.

"Dentre as quarentenas modalidades da cantoria, destacam-se as seguintes muito usadas e conhecidas atualmente: quadra, sextilha, setissílabos, decassílabos, martelo agalopado, martelo alagoano, Brasil caboclo, galope à beira-mar, treze por doze, quadrão, coqueiro da Bahia, trava-língua, rojão pernambucano". (Dantas, 1998: 249).

                Para efeito didático decidimos mostrar um pouco das formas supracitadas utilizadas no dia-a-dia pelos poetas de cordel e trovadores:

a) Quadra: muito aplicada em prosa, poesia popular, literatura de cordel, sendo os versos com quatro linhas (ou pés), de sete sílabas, com a deixa livre ou rimando com a próxima estrofe, podendo ter um esquema de rima bastante variado.

Nesse mundo turbulento
Escravo do capital
Eu quase que não agüento
Carregar meu ideal.

Luto, luto a cada dia...
Porque lutar não faz mal.
Meu maior sonho seria
Ver o mundo mais igual.
(Valentim Martins)

b) Sextilha: gênero preferido pela maioria dos poetas de cordel e violeiros contendo versos de sete sílabas e estrofes de seis linhas:

É a pobreza aumentando
Numa proporção veloz
Quando ficamos calados
Alguém decide por nós
É por isso que eu digo
Temos que ter vez e voz.
(Valentim Martins)

c) Setissílabos: também chamados de heptassílabos são versos de sete sílabas que podem ser apresentados em estrofes com sete, oito, e dez linhas:

Lágrimas, sonhos, sorrisos...
Temos sempre eu e você
É difícil a caminhada
Nessa arte de viver
Desde os atos mais medonhos
Menor do que nossos sonhos
Sei que não podemos ser...
(Valentim Martins)

d) Decassílabo: dez linhas e dez sílabas:

Quando chove meu sertão é tão bonito
Com a vida presente em cada flor...
Mas depois da alegria vem a dor
É a seca trazendo o esquisito
Chora o pobre faminto e aflito
Ao perder toda sua plantação
E aqueles que dirigem a nação
Nunca querem tomar as providências
É preciso, irmão de paciência...
Pra lutar por melhoras pro sertão.
(Valentim Martins)

e) Martelo alagoano: com refrão "nos dez pés de martelo alagoano".

Sempre louvo as festas populares
Porque são expressões do nosso povo
São João, Natal e o ano novo;
Festejados nas praças e altares
É o povo respirando novos ares
Num compasso bonito e soberano
Repetido há milhares de anos
E mantendo cultura e tradição
Respeitando as leis do coração
"Nos dez pés de martelo alagoano"
(Valentim Martins)

f) Brasil caboclo: com o refrão "nesse Brasil de caboclo de mãe Preta e pai João":

Brasil de gente sofrida
Sem terra, sem moradia...
Sem paz e sem alegria
De poder viver a vida
E de gente destemida
Querendo ser cidadão
Trabalhando de montão
E ganhando muito pouco
Nesse Brasil de caboclo
De mãe Preta e pai João.
(Valentim Martins)

g) Galope na beira do mar: estrofes de 10 linhas, 11 sílabas métricas deixa livre ou a 9ª rima com o primeiro verso da estrofe seguinte, e o 10º verso finalizando com "cantando galopes na beira do mar":

Eu sou professor, vivo sem sossego
Andando depressa qual Judeu errante
Em duas escolas, no mesmo instante...
Procurando meios e não tenho apego
Querendo entender onde foi meu erro
Cumprindo o dever não posso parar
Não me sobra tempo nem pra estudar
Percebendo pouco, coberto de conta
Falando sozinho de cabeça tonta
"Cantando galope na beira do mar".
(Valentim Martins)

h) Treze por doze: 12 linhas, rimando com "É o cantador de vocês":

Era só o que faltava
Esse maldito apagão,
O transtorno, a confusão...
No país não se acaba.
O povo é que vá pras favas!
Assim dizem os cruéis
É 13 por 12 é 11 por 10
É 9 por 8, é 7 por 6
É 5 por 4, mais 1, mais 2 e mais 3
Só não constrói a história
Se apagarem a memória
"Do cantador de vocês".
(Valentim Martins)

i) Dez de queixo caído: 10 linhas, 7 sílabas, rimando com "nos dez de queixo caído":

Meu caro amigo estudante
Veja aqui o meu relato
Positivo e muito exato
Da memória resultante.
Tenha calma, não se espante!
E não se dê por vencido
Eu ficarei comovido
Se um dia vê-lo formado
Feliz e realizado
Nos dez de queixo caído.
(Valentim Martins)

j) No tempo de Pai Tomaz:

"Curavam ventre caído",
Enxaqueca, mal de olhado,
Indigestão, bucho inchado,
Azia, pé desmentido,
Mal-de-morte, dor de ouvido,
Constipação, dor-de-dente,
Suor frio e corpo quente,
Banzo, cobreiro e antraz
No tempo de Pai Tomaz
Preto Velho e Pai Vicente".
(Sobrinho, 1998:244).

l) Mourão: Um canta perguntando e outro respondendo:

"Pra que serve o poder?
Para governar o povo
Para que serve o novo?
Pra em fim envelhecer
Para que serve o querer?
Pra quem sente precisão
Para que serve o perdão?
Pra dizer tá perdoado
Isso é que é mourão voltado
Isso é que é volta-mourão".
(CD - Zé Ramalho, 2000).

m) Coqueiro da Bahia: 10 pés ou linhas, com 7 sílabas, com o refrão:

"Coqueiro da Bahia.
Quero ver meu bem agora
Quer ir mais eu vamos
Que ir mais eu vambora".

Quando a gente está amando
Fica meio desatento
Só sente a brisa do vento
Quando bota o rosto fora
E por qualquer coisa chora
Pensando no que queria
Coqueiro da Bahia.
Quero ver meu bem agora
Quer ir mais eu vamos
Que ir mais eu vambora.
(Valentim Martins)

n) Trava-língua: Exemplos de autoria de José Alves Sobrinho (1988:247).

"Passa o praça com o preso.
Para o presídio da praça,
O praça, o preso empurrando...
O preso pede a quem passa:
Prenda o praça e solte o preso
Solte o preso e prenda o praça".

o) Rojão pernambucano

Numa noite sertaneja
De uma lua prateada
Eu arranjei uma amada
E começou a peleja:
Eu tomei uma cerveja
E fui atrás de Maria
Eu entrava, ela saía...
Ela saia, eu entrava
Quando eu ia, ela voltava
Quando eu voltava, ela ia.
(Valentim Martins)

                Abrir as portas da escola e reservar espaço para esse universo cultural pode ser também um importante passo no sentido de encaminhar os educandos para o contato com a música, a literatura e as artes.

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