Hoje é um dia triste. Para mim, para todos de Dona Querubina, a nossa querida mãe-vó, para os amigos e conhecidos. Ti Doutor partiu. De vez. Vítima de um ataque fulminante do coração. Sentiu-se mal noite passada quando reclamou de intensa dor no peito. Saiu de casa, e na calçada, ficou um tempo recebendo melhor ventilação, enquanto tia Antônia corria para pedir socorro, que ao voltar o encontrou já caído. Foi levado num carro para um hospital de Cajazeiras, mas faleceu no caminho.

Minha irmã Neuma ligou e Gracinha atendeu. Era o aviso, por volta das três da manhã. Comuniquei aos meus colegas de trabalho que iria viajar para vê-lo pela última vez, mas meu velho e bom carro, desta feita falhou. Na oficina, as 11 horas fui informado que não dava tempo consertar a caixa de marcha para viajar. Até tentei alugar um transporte, mas era tarde. Havia a burocracia, além do horário avançado para chegar as 17 horas, horário do sepultamento. De João Pessoa para Santa Helena, nunca gasto menos de sete horas de viagem.

Tudo isso, como disse para João Kléber, ao telefone, era desculpa de um camarada desorganizado financeiramente. Eu tinha que ser mais previdente, precavido, para não me ausentar num momento como este, que é único.

Queria ver ti Doutor pela última vez para prestar uma simples homenagem a um homem com raras qualidades nos dias de hoje, e não é porque ele se foi. Ele tinha, dentre tantas, duas qualidades que mais admiro no ser humano: a honestidade e a generosidade. É um legado que aprendi desde pequeno quando ia a sua casa, no Pé Branco e vivia isso junto com os seus meninos, principalmente Nilton e Gilberto, quando catávamos algodão, limpávamos o mato nas lavouras de feijão, milho ou arroz, pescávamos nos riachos ou no açude, pegávamos mari, goiaba, manga, pinha, caju. E seguindo os seus ensinamentos, qualquer um de nós tinha que pedir autorização se fosse pegar em algo alheio. Lembro, quando criança, que o desobedecemos certa vez. Havia uma tradição, na brincadeira dos caretas de se roubar milho nas roças para fazer a malhação do Judas. Ouvíamos os mais velhos dizerem que, naquela circunstância, o que fazíamos não era pecado. Pois bem, Nilton, Gilberto e eu, que tínhamos de 10 pra 11 anos, inventamos de fazer essa travessura na roça de Gerson, irmão de Amadeus, que morava numa casa perto de ti Francisco Saturnino. Embora estivéssemos com as máscaras de careta, a mulher de Gerson nos reconheceu e gritou: – "Pera aí que eu vou chamar Doutor seus danados". Era a certeza de que ele não compartilhava, jamais, com o errado.

Na escola Luiz Cartaxo, onde estudei o primário, até o 3º ano eu assinava o meu nome como Francisco Ferreira de Freitas, o nome de ti Doutor. Só depois que alguém da escola exigiu o meu registro de nascimento é que eu passei a escrever o meu nome, tal como hoje. Na verdade não sei como isso começou nem porque aconteceu. Talvez tivesse sido o sentimento de gratidão que eu, espontaneamente, encontrara para agradecer àquele que ofereceu para minha mãe, ao meu pai e aos meus irmãos uma casa para morarmos, e não cobrava nada por isso. Durante muitos anos moramos na rua do Galo, número 59, onde hoje mora minha prima Neli, sua filha.

O Pé Branco era o meu refúgio em muitos finais de semana e nas férias escolares. A casa de ti Doutor era onde eu ficava mais. Lá fazia a maior parte das refeições e onde dormia quase sempre, mas antes ia escutar as histórias contadas pelos mais velhos, todas as noites na calçada da casa de mãe-vó juntamente com os demais primos, tios, a própria mãe-vó, evidentemente, e parte da comunidade do sítio Pé Branco, que se reunia à luz da lamparina, e onde alguém sempre pegava esterco de gado do curral para acendê-lo, e, assim, espantar as muriçocas. Era um tempo maravilhoso. Vivíamos numa situação de muitas dificuldades, mas éramos felizes. O transporte para a cidade era raríssimo. Íamos muito a pé, uma légua(6 Km). As vezes numa carona de carroça ou de jipe, quando muito, de propriedade de Amadeus. Mas ti Doutor tinha uma bicicleta. Foi nela que aprendi a andar de bicicleta, como falamos no sertão. Comento sempre que uma das maiores alegrias que senti foi nesse dia.

Deitávamos nas redes e conversávamos muito, ainda no escuro, antes de adormecer. A energia elétrica só viria duas décadas depois desse tempo. Víamos apenas a luz do luar pelas brechas das janelas e portas. Acordávamos cedo e após o café, uma infinidade de atividades, feitas com muito empenho, quase não havia preguiça. Levar o gado para a roça, depois buscá-lo para beber água no açude, caçar passarinho, preá, tiú, peba, quando ainda havia matas. Pescar nos riachos e nos açudes. Jogar bola era o lazer. As vezes um tocador fazia a festa e o povo dançava forró, o autêntico. Os meninos e a maior parte dos jovens iam apenas se divertir, não havia essa história maldita de bebida sem controle nem muito menos de envolvimento de jovens com drogas. Havia as novenas, que eram realizadas na casa de mãe-vó. Boa parte do povo ficava no terreiro, e depois, muita conversa. As pessoas sorriam muito. Aposto que muito mais que hoje.

Ti Doutor era muito cuidadoso com a educação dos seus filhos, as vezes rigoroso a ponto de não permitir que fossem com tanta freqüência às festas por medo do envolvimento deles com bebidas e más companhias. Era um homem disciplinado, tinha um enorme medo da morte. Se o médico lhe indicasse uma dieta e certas medicações ele jamais deixava de seguir as recomendações. Era um conciliador. Argumentava com quem quer que fosse, com muita gentileza e com um sorriso no rosto, para dirimir um debate mais caloroso ou uma possível briga. Religioso católico sempre estava presente nos eventos da igreja. Gostava de ler a bíblia e só se aborrecia quando algum evangélico fanático, com o objetivo de converter mais um, vinha na sua porta falar mal dos seus santinhos pregados na parede.

Dos 5 filhos, Bidonga foi o que saiu cedo de casa para ser criado por mãe-vó. Foi como uma promessa. Depois Bidonga e eu fomos, em 1981, para Salvador, com 18 e 14 anos, respectivamente, na ilusão de que conseguiríamos uma vida melhor. Nosso objetivo era ganharmos dinheiro para ajudar em casa. Depois de um ano vi que isso não ia acontecer e resolvi retornar. Ele ficou lá, onde continua, tornou-se independente. Constituiu a sua família.

Quando surgiu o curso supletivo em Santa Helena, ti Doutor decidiu estudar. Gracinha, minha companheira, foi sua professora. Ele tinha uma grande admiração por ela, que me contava da sua aplicação e interesse.

Ti Doutor viveu uma grande tristeza quando se separou dos dois filhos Nilton e Gilberto, que foram tentar a sorte em São Paulo. Eles eram muito apegados. O seu semblante era só felicidade quando eles vinham passear todo final de ano.

Depois, a sua dor maior foi a morte de Nilton, sobre a qual escrevi um cordel. Para conviver com tamanha ausência ele me revelou, uma vez, que fazia leituras diárias das escrituras sagradas. Era o seu alento.

Recentemente, esteve em João Pessoa fazendo um tratamento contra um câncer no estômago. Ficava mais nervoso com os comentários dos conhecidos do que com os diagnósticos dos médicos. Fui visitá-lo, e na ocasião, ele deixou transparecer, mais uma vez, o seu medo de morrer. Fez uma cirurgia e, após os exames, ficou constatado que havia se curado. Esteve na minha casa e comentou da satisfação que sentira por eu ter lhe recebido tão bem, porém a única coisa que fiz foi ter lhe oferecido um simples café com açúcar mascavo. Era um homem simples. Aqui, a nossa saudade.

Fora aquela travessura de criança, com muito orgulho, posso dizer que tenho procurado imitá-lo. Ti Doutor sempre foi um espelho ao longo da minha vida.

João Pessoa, 25 de julho de 2013, 21h e 16min.
Francisco Ferreira Filho Diniz, Francisco Diniz, Nenen de Lica.